Veja a vida secreta em World of Warcraft de um filho gamer com doença degenerativa
- Não vire a Pagina
- 26 de mar. de 2019
- 6 min de leitura
Uma vida impressionante de Robert e Trude. Toda a Europa descobriu essa vida, só quando Mats morreu.
"Nós éramos muito conservadores. Não queríamos que Mats virasse a noite acordado, e assim por diante."

Expectativa de vida
O Mats no seu aniversário de quatro anos, em julho de 1993, dentro de quatro anos ficaria preso a uma cadeira de rodas para nunca mais se levantar.

Robert e Trude tinham recebido a notícia em maio. Em uma pequena sala que abriga o Hospital Ullevål, seus pais descobriu por que o filho caía e se machucava com tanta frequência. Por que despencava dos balanços. Por que não subia a escada do escorrega na creche, embora adorasse escorregar. Por que se apoiava nos joelhos como um velho quando estava sentado e precisava se levantar. Por que não corria com as outras crianças.
Os médicos contaram a Robert e Trude que Mats sofria de Distrofia Muscular de Duchenne, uma doença rara que causa degeneração muscular em meninos. Os genes de Mats tinham um erro de codificação que impediria o desenvolvimento normal de seus músculos. E que os destruiria.
"Depois que colocamos Mats na cama naquela noite, ligamos para o médico. Tínhamos permissão para fazer isso. 'Liguem a qualquer hora se precisarem de mais informações'', diz Robert.
Depois de meia hora Trute recebe um recado que deixou confortável:
Robert diz: 'Mas pelo menos ele não vai morrer disso!' O médico ficou em silêncio do outro lado da linha por um momento. Depois, disse: 'Não, mas nossa experiência mostra que esses pacientes raramente vivem até depois dos 20 anos'."
Robert fica queto por um minuto.
"Ele conseguiu chegar aos 25", completa.
Naquela noite de maio de 1993, na casa que moravam em Ostensjo, a sudeste de Oslo, o casal tentava assimilar todas as informações, enquanto a ideia de futuro se transformava em uma ameaça.
Mats não teria "uma vida normal". Ele não seria capaz de praticar esportes. Não sairia e conheceria garotas. Não experimentaria o mundo.
Ele morreria jovem, sem ter vivido uma vida plena.
Robert e Trude acreditavam que o filho seria tirado deles sem deixar sua marca no mundo.
Mas estavam completamente enganados.
Como criar uma identidade do zero
Mats encontrou uma forma e se reinventou.
Na virada do milênio, a família Steen se mudou para uma casa adaptada para cadeira de rodas em Langhus, ao sul de Oslo.
Embora Mats pudesse jogar Gameboy durante o recreio na escola. Ele estava em uma cadeira de rodas, tinha um assistente com ele em todos os lugares.
Os pais se perguntavam o que Mats gostaria de fazer no tempo livre, quando os colegas de turma jogavam futebol e zanzavam de um lado para o outro.
Pensaram em jogar online então Robert deu ao filho a senha do computador da família e um mundo novo se abriu para o menino de 11 anos.
"Nos últimos dez anos de vida, Mats jogou entre 15 mil e 20 mil horas", estimou Robert em seu discurso. "Isso equivale a mais de dez anos de um emprego em tempo integral."
"Quando o acompanhante noturno chegava, às 22h, Mats precisava estar na cama", diz o pai. "A função dele era monitorar se Mats estava deitado, não colocá-lo na cama. Mats protestou, é claro, mas contra a vontade concordou em ir dormir cedo."

Lorde Ibelin Redmoore se tornou o principal personagem de Mats em seu universo de games.
O segundo era Jerome Walker.
"Jerome e Ibelin são extensões de mim mesmo, representam diferentes lados meus", escreveu Mats.

Como um gamer, vai conhecendo este mundo pouco a pouco, assim como conhece o mundo real.
As aparências enganam
Robert Steen se lembra do que via.
"Quando passava pelo porão de Mats durante o dia, e as cortinas estavam fechadas... sentia uma tristeza de que me lembro muito bem."
"'Ah, não, pensava: 'Ele nem sequer começou o dia ainda'. Eu ficava triste, porque o mundo dele era tão limitado."
Mas quem não é um gamer não consegue enxergar o panorama todo.
"Achávamos que se tratava apenas do jogo. E nada mais. Pensávamos que era uma competição que você precisava ganhar", diz Robert.
E havia a questão do ritmo circadiano - o ciclo diário de 24 horas do nosso organismo.
"Não entendíamos por que era importante para Mats estar online tarde da noite. Mas é claro, não é pela manhã ou no meio do dia que as pessoas estão jogando. Nesse horário, a maioria está na escola ou no trabalho."
"Nós só entendemos isso depois que ele morreu. Até o último minuto, queríamos que ele estivesse dormindo às 11h da noite, como outras pessoas 'normais'."
Um roubo em Goldshire
Lisette Roovers, de Breda, na Holanda, era uma das amigas mais próximas de Mats. E foi uma das pessoas que voaram para Oslo em 2014 para participar do seu funeral.

Hoje com 28 anos, Lisette lembra como foi.
"Nós nos conhecemos em Goldshire. Não é mais um lugar legal, mas naquela época Goldshire era uma pequena vila agradável, onde você podia conhecer novos personagens interessantes. Eu estava procurando alguém para jogar, e entre outros sentados ao redor de uma fogueira estava quem mais tarde eu viria saber que era Ibelin."
"Eu - ou melhor, Rumour - agi um tanto impulsivamente: saltei dos arbustos e peguei o chapéu de Ibelin. Parei por um momento, olhando para frente e para trás, depois corri com o chapéu sem rumo", conta Lisette.
Ela sorri um pouco.
Mats também escreveu sobre o primeiro encontro dos dois, em um post em seu blog intitulado "Amor".
"Neste outro mundo, uma garota não veria uma cadeira de rodas ou qualquer coisa diferente. Ela veria minha alma, coração e mente, convenientemente colocados em um corpo forte e bonito. Felizmente, quase todos os personagens deste mundo virtual têm uma aparência ótima."
"Mats era um grande amigo, às vezes um amigo muito próximo", diz Lisette.
"Nós escrevíamos sobre tudo, mas ele não escrevia sobre sua condição. Eu achava que a vida dele era como a minha. Por exemplo, nós dois odiávamos a escola."
Mas havia coisas nas quais eles discordavam.
"Ele escreveu que odiava neve. Eu escrevi que adorava. Não sabia que ele odiava neve porque estava sentado em uma cadeira de rodas. Não sabia sobre a cadeira de rodas."
Encontrando sua tribo

Um território livre

Premonição sombria
Cerca de seis meses antes de morrer, Mats ficou ausente do World of Warcraft por dez dias. Seus companheiros se perguntavam onde ele estava.
"Dez dias era muito tempo para ficar desconectado, porque Mats estava sempre lá, quando você precisava de alguém para jogar ou conversar", diz Anne.
Quando ele voltou ao jogo, ficaram sabendo que ele tinha sido internado. Anne conta que finalmente decidiu dizer o que estava pensando.
Ela escreveu: "Mats, você deve dar a alguém a possibilidade de entrar em contato conosco, caso algo aconteça com você. Para que a gente fique sabendo, se você não puder nos enviar uma mensagem".
Hamill esperava que ele desse sua senha a alguém, ou pensasse em uma solução para informar a Starlight se algo acontecesse com ele.
"Você é importante para a gente", acrescentou.
Mats respondeu: "Você só está dizendo isso porque sabe que estou sentado em uma cadeira de rodas."
"Eu disse a ele que isso não era verdade", conta Hamill.
"Eu falei: 'Você é importante para a irmandade. Você é um ouvinte fantástico. Você é uma das pessoas que coloca os outros para cima na Starlight'."
Mats levou um tempo para escrever de novo.
"Mas entendi que ele havia levado a sério o que eu falei", diz Hamill.
Ele só tinha mais seis meses de vida.
Em 18 de novembro de 2014, Mats morreu.
Em estado crítico, ele foi novamente internado. Os médicos conseguiram estabilizá-lo e disseram que poderia ter alta em breve.
Mas, em seguida, a família foi instruída a ir o mais rápido possível para o hospital.
"Ele estava no quarto andar, no fim de um corredor. Cada segundo era precioso, o corredor era muito longo", diz Robert.
Eles chegaram tarde demais.
A foto que Robert tirou do filho no leito de morte mostra um jovem pálido, com cabelo escuro e ondulado - os olhos finamente desenhados, nariz delicado e a boca marcada pela máscara de respiração que ele usou por tanto tempo. Parece que ele está dormindo.
Muitos anos antes, Lisette fez um desenho para Mats:

No fim da jornada
"Eu escrevi e chorei. Cliquei, então, em publicar. Não sabia se viria alguma resposta."
Robert respira fundo e continua:
"Algumas horas se passaram, e chegou o primeiro e-mail - os pêsames sinceros de um dos integrantes da Starlight."
"Eu li o e-mail em voz alta: 'É com o coração pesado que eu escrevo este post para um homem com quem nunca me encontrei, mas que eu conhecia tão bem'. Isso me marcou."
Começaram a chegar mais mensagens de condolências - mais histórias da vida online de Mats.
"Ele transcendeu seus limites físicos e enriqueceu a vida de pessoas em todo o mundo", dizia um deles.
"A morteu de Mats me atingiu com muita força. Não consigo colocar em palavras o quanto sentirei falta dele", afirmava outro.
"Não acredito que exista uma pessoa que seja o coração da Starlight. Mas se tivesse de ser alguém, teria sido ele", escreveu um terceiro.
A voz de Robert embarga.
"Uma sociedade inteira, uma pequena nação de pessoas começou a tomar forma", diz ele. "E numa escala que não tínhamos ideia. Chegaram vários e-mails no decorrer do dia e nos dias que se seguiram, falando sobre o que Mats tinha significado."
Robert explica que as duas realidades se fundiram.



Raissa
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